O véu negro
aproximou-se de ti
e cobriu-te.
Agasalhou-te.
Seria frio
o que sentias?
Pergunto-me
se sentirias
o toque leve
de sua asa
nessa tua pele
carcomida
pelas agruras
de uma vida errante.
Tanto tempo
sem um carinho...
Seria o aconchego
que ansiavas?
Nem questionaste
quem to oferecia.
Já te seria,
decerto,
indiferente
de quem viria
o alento
que te faltava.
Reconhecerias o rosto
que trazia o véu negro
que te cobriu?
Compreenderias
que ao recebe-lo
não haveria volta?
Terias tu
o abraçado
tanto como ele
te abraçou a ti?
Ou deixarias,
impávido,
que te envolvesse
o terno calor
com que te brindava Tânatos
enquanto te sorvia a vida?
P.S.
A morte chegou-nos à
porta e deixou um travo amargo de indignação.
Levou, sem aviso, alguém
que nos era muito próximo. Não diria que era uma pessoa muito querida. Mas era,
com certeza, mais chegada que algumas muito queridas.
As
pessoas assim chegadas são
aquelas a quem a vida fez cruzar caminhos próximos ou os mesmos que os nossos e
que ocupam um lugar ali, algures entre a família e os amigos.
São pessoas que estão na
nossa vida praticamente todos os dias, para o bem e para o mal. São aquelas
que nos aborrecem tremendamente, vezes sem conta, mas, na mesma medida, à sua
própria maneira, nos dão auxílio nos nossos momentos complicados, mesmo que não
pronunciem uma palavra de conforto, por não terem jeito com as palavras.
São aquelas a quem já
conhecemos os hábitos mais subtis, o ritmo dos passos, reconhecemos o cheiro e
os abraços.
A vida já me deu a triste
oportunidade de cruzar com a morte vezes sem conta.
Por mais que tente, não
consigo ainda aceitar que chegue em determinadas situações e lugares não só
inconvenientes, mas até humilhantes e indignos a uma pessoa de bem.
Uma coisa é ver um corpo preparado
com esmero, já depositado numa urna, outra bem diferente é ver um corpo indefeso,
na posição em que se deixou ficar no momento em que a morte o surpreendeu e o ser
deixou de ser pessoa. O sopro da vida esvaiu-se e restou apenas uma matéria
inanimada, desprovida de qualquer reacção, insensível e inalterável na sua
posição, como se de um manequim de vitrina de loja se tratasse.
Para quem crê na alma
fica a sensação de que a verdadeira essência da vida fugiu num repente. Apetece,
então, ir procurá-la para confortá-la.
Para quem apenas crê na
matéria fica a dúvida, certamente, sobre o que realmente se terá passado ali,
naquele milagre da vida/morte. Apenas química?
Pergunto a mim mesma se
naquele lapso de tempo, entre o ser e o não ser, haverá tempo para a tomada de consciência.
Do nosso morto, ainda persegue-me
a lembrança de ver o corpo naquela posição inerte e desprovida de fumo de vida
com um abraço em suspenso.
Resta-me a incredulidade
diante daquele abraço surpreendido pelo fim, que nem teve tempo de desabraçar.
Ou abraçaria a
morte?