No curto passeio matinal em que levo meu cão à rua e aproveito para espiar o meu amigo mar, deparo-me com uma cena, que à partida, parece a meus olhos ainda meio ensonados, um tanto insólita.
No espaço que eu divido com os restantes afortunados-amantes do mar, que ali se colocam estrategicamente para desfrutar de toda a beleza que o local nos oferece, avisto um homem que também habita na vila, que sei cego. O homem, tal como todos os outros que nos colocamos ali, naquele espaço privilegiado para olhar e respirar o mar, está, também ele, ali, mãos apoiadas no cercado, de cara voltada ao mar, a admirar o mar.
Passada a surpresa, pergunto-me o que faz um homem que não vê, parado em frente ao mar, como se o olhasse, tal e qual tantos outros que ali param, naquele miradouro em cima das rochas, sobre o mar...
Eu, como que em transe hipnótico, presenteada pelo acaso com este raro momento de beleza, não tiro os olhos do homem. Observo-o, admiro-o.
O homem arqueia o corpo, elevando levemente a cabeça ao céu, a inspirar aquele ar gelado da manhã levemente salgado pelo mar. Esboça um sorriso de prazer e torna a inspirar mais uma e outra vez. Cabeça então virada ao mar, os olhos que não vêm sabem-no ali e concentram-se nele.
O homem vê cada onda quando pressente sua aproximação e ouve-lhe a força com que se lança sobre as rochas.
O homem vê a imensidão do mar quando respira a maresia que dele chega.
O homem vê o estado do mar quando recebe os respingos que a marulhada lhe faz saltar à cara.
O homem vê o azul do mar pela intensidade do prazer que o momento lhe proporciona.
O homem cego não só vê, ele enxerga o mar, porque é com a alma que o olha.
Então, deixei-me estar quieta, voltada para o mar, fechei meus olhos e descerrei todos os meus restantes sentidos permitindo-lhes perceber todas as sensações que chegavam.
Tenho ciente de que não terei conseguido perceber todas as sensações experimentadas pelo homem, meu vizinho no miradouro, porque não possuo, nem de longe, sua capacidade, adquirida ao longo duma vida de experiência. Mas naquele dia eu aprendi mais um pouco da vida. Naquele dia eu descobri uma outra maneira de ver.
O que é ser cego - ler aqui
Homem cego "vê" através do som - ler aqui