25/05/16

Tempo de te amar



Veio o tempo
e o tempo se foi.
E eis que chegou o tempo
em que já
não me resta muito tempo
de ter tempo
e dar tempo
ao tempo.

Se deixo passar
o tempo,
o tempo foge
e fico sem tempo
de ter tempo
de te amar
com tempo.








Este poema tão pequenino saiu-me assim tipo: zás-tráz!
Chegou, de súbito, à ponta do lápis, que quase não lhe conseguia acompanhar o nascer, que era assim como o brotar da água na fonte.
Em menos de um instante já estava cá fora. Meio sem querer, sem buscar palavras, que essas corriam à frente do pensamento.
E de tão pequenino e singelo o poema se fez grande em significado para mim.

Embora saibamos dizer que o tempo é fugaz não o vivemos com a verdadeira consciência da fugacidade.
Porque, para nós, o tempo não passa.
Julgamo-nos eternos e, mais que isso, eternamente jovens, eternamente sãos e eternamente eternos.

E, assim, andamos tão enganados a acreditar ter tempo, tanto tempo…
Porque não vivemos o verdadeiro tempo, aquele tempo que corre e não pára para descansar nem para nos dar tempo.
Vivemos o tempo irreal, o tempo que julgamos que espera por nós.
Prova disso é a construção de planos aos montes que nunca se chega a colocar em prática, num adiar eterno, por uma ou outra razão.
Passamos uma vida inteira a acreditar piamente que ainda vamos a tempo.
- se não for este mês, é no mês que vem.
- se não for no mês que vem, será no outro.
E nisso passa-se um ano.
E passa outro.
E mais outro.
Até que chegue o dia em que nos apercebamos que passou tempo a mais e a gente:
- não fez.
- não foi.
- não visitou.
- não viajou.
- não comprou.
- não viveu.
- não amou.
- não nada do que planeou.

E o tempo acabou.

2010


17/05/16

A escrita é arma


Quando não se quer espingarda nem metralhadora.
Quando não se tem aptidão para fazer mortos nem feridos.
Quando a voz é amordaçada.
Quando a liberdade é encarcerada.
Quando se é ninguém, a palavra dá poder. A palavra faz-nos grandes.

A escrita pode ser arma. Em silêncio ela grita. Ultrapassa fronteiras, navega por mares revoltos, redobra força e alcance na vontade de outros.
A poesia tem um poder maior do que o seu tamanho e pode mover montanhas.
Mia Couto, no prefácio de um livro de Xanana Gusmão, fala disso tão bem.

Xanana, cujo nome correu mundo, a quem arrancaram as armas, isolaram numa cela e lhe calaram a voz. Mas, em silêncio, continuou seu grito, pela liberdade de seu povo, de sua terra, de seu mar.
Na prisão, Xanana escrevia e pintava.
Na prisão, seu silêncio gritou ao mundo, e desencadeou das maiores acções conjuntas de vários países para a instauração da liberdade num país.

Hoje, tenho em mãos, seu livro de poemas e pinturas, uns e outros da época em que esteve preso. O livro: Mar Meu, tem um prefácio fabuloso de Mia Couto, de que transcrevo alguns trechos.


«O tempo é um ser que engravida antes mesmo de nascer.
Em cada momento, a História sonha o seu próprio futuro. (...)
Com desespero de náufrago, o tempo abraça ao mundo e, no remoinho, ambos se afundam. (...)
Neste estilhaçar de tempo e mundo, que lugar tem a solidariedade? Quanto nos pode ocupar a injustiça que ocorre distante, quando, tantas vezes, fechamos os olhos àquela que tem lugar no nosso próprio lugar?
Timor parece erguer-se como prova contrária a estes sinais de decadência. Afinal, há alma para sustentar causas, erguer a voz, recusar alheamentos. Uma nação distante se reassume como nosso lar, nossa razão, nosso empenho. O sangue que se perde em Timor escorre de nossas próprias veias. As vidas que se perdem em Timor pesam sobre a nossa própria vida.
Foi assim que li os versos de Xanana. E naquelas páginas confirmei: pela mão de um homem se escreve Timor. (...)
Há ali não apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia que queremos que seja nossa. (...)
Adentrado numa cela, Xanana nunca esteve tanto no mundo. Seu nome nunca ganhou tais ecos, seu rosto magro nunca se desdobrou em tanto retrato. (...)
Mais que o negar de uma nação, um genocídeo está acontecendo. Não basta a nossa indignação. (...)
A poesia pode ser uma destas subtis armas que poderá mover montanhas. (...)
Numa cela isolada, um homem escreve versos. Reclama o simples direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor. Neste simples acto, este homem de aparência frágil, desqualificou as paredes, convocou a nossa solidariedade e negou o isolamento. (...)
Afinal, um simples verso refaz o Universo.»

Maputo, 21/6/98

http://fotos.sapo.pt/east_timor/fotos/?uid=0gbkKOSEbc0A5ZzbdZYY#grande"Estou em guerra
o céu não é meu
Estou em guerra
o mar não é meu
Estou em guerra
e a vida só se conquista
com a morte...
na esperança de recuperar
o meu mar!"
 



 O poema é de Xanana Gusmão, escrito em 1995, a tela, também sua, é do ano anterior, ambos criados na prisão.






 

14/05/16

A caixa de sonhos


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Eis que chega aquele dia em que a pessoa resolve ir buscar a caixa onde meteu seus sonhos e, que só abrira em algumas raras noites de insónia em que os fantasmas do dia-a-dia e as assombrações da noite lhe deixavam espaço para divagar e sacudir o pó acumulado sobre a tampa. Agora, de tanto tempo sem conviver com eles, já nem se lembra que sonhos sonhara...




06/05/16

A terra que já não parece encantada


https://pixabay.com/pt/



Era um vez …
uma terra que ficava do lado de lá da montanha.
Era uma terra com cheiro a cacau, que entoava belas melodias que corriam livres de ouvido em ouvido.
Lá nessa terra, que parecia encantada, não havia fadas nem duendes. Não havia pós de pirlimpimpim, nem varinhas mágicas, nem cartolas negras de alta magia. Havia homens e mulheres e crianças. Muitas crianças, umas mais pequenas e outras maiores, que traziam nos sorrisos o brilho dos diamantes.

Os muros que separavam os quintais das casas eram baixos o suficiente, de maneira às pessoas poderem se debruçar sobre eles e estarem à conversa com os vizinhos. Os portões estavam sempre abertos para trás: porque todos eram bem-vindos. E, se chegassem à hora em que a comida estivesse a ser posta na mesa, era só acrescentar mais um prato e todos comiam em alegria.

Nessa terra, que parecia encantada, todos tinham voz. Todos falavam e todos sabiam ouvir.
Todos eram donos das decisões tomadas.
Não conheciam o significado da discussão.
Não conheciam intrigas nem guerras. Viviam em paz.
Não havia pobres, porque não havia ricos.
Havia justiça porque não conheciam a palavra mentira e todos tinham boa memória: ninguém podia se esquecer do que havia dito ou do que havia feito, porque todos se lembravam.

Mas um dia, houve um dentre aquele povo, que quis atravessar a montanha e seguir o cheiro das novidades que o vento trouxera.
Quis ir e foi.
Quando voltou, avisou que se fechassem os portões, que o perigo andava à solta.
Mandou que se alteassem os muros, para evitar o vaguear dos olhares além-fronteiras.
Anunciou que as horas das refeições não eram para visitas.
Determinou que as pessoas não mais se juntariam para tomar decisões, pois que muita gente a opinar, não daria bom resultado. Um chegaria para ditar as leis. Quando muito, usariam outro para votar a favor.

Os livros foram banidos.

As pessoas deixaram de sorrir.

Até a terra deixou de entoar as belas melodias.
Ninguém falava com ninguém.
Quando o povo começou a sentir-se infeliz, o homem que havia atravessado a montanha, que havia ido e voltado, mandou que trabalhassem mais, porque o trabalho geraria a riqueza que traria a felicidade à terra...

E foi assim, que tantos homens, mulheres e crianças perderam-se em desencanto.






* Neste momento, em vários pontos diferentes do planeta, por diferentes razões, há terras sem encanto.
   Há olhos que não podem se estender além dos muros.
   Há portões que nunca são abertos.
   Há crianças que não conhecem o sorriso.
   Há livros que não são lidos.
   Há bocas que não podem falar.
   
   Há quem feche os olhos a tudo.