15/11/14

Simão



Simão foi. Já não é. Não estava destinado a ser, chego eu a essa conclusão.
Simão nasceu cão. Tolo que nem ele só. Raça pura ou vira-lata, não lhe interessou nunca. Era um cão e como tal se portava.
Era pequeníssimo, tanto, que muitas vezes eu nem o via. Chamava-o e, quando furiosa por ele não vir ao meu chamado, me virava já barafustando, dava de cara com ele sentado, a olhar para mim com aquela cara só dele, de "não vês que já cá estou? És tola ou quê?" E eu passava-me da cabeça. 

Na praia ninguém ficava indiferente à presença de Simão: ele não se deixava passar despercebido, apesar do pouco tamanho. E sua maior felicidade era correr para o primeiro ser que visse e saltar, saltar, como se quisesse compensar com isso, sua pequenez.
Toda a gente se encantava e ele se encantava com toda a gente. Mesmo os cães enormes com cara de poucos amigos, que de início paravam a olhar aquela coisinha aos saltos, acabavam por disparar com ele em corridas fantásticas pelo areal.

Houve uma manhã, que vai ficar na história das nossas vidas, em que ele cruzou na areia com uma cadelinha pequenita pinscher. Foi uma loucura!
Mal se aproximou o Simão, o dono da cadelita assustou-se com a abordagem deste e, muito nervoso e a dizer muito aflito que a dele era "uma cadêlinha" (o circunflexo é para melhor descrever a maneira querida como o senhor chamava o seu ser-amado), o que, para ele, deveria significar: "ela é uma relíquia e este desastrado rafeiro ainda a destrói"... 
Eu, educadamente, ainda tentei acalmar o senhor dizendo que Simão também era apenas um cãozinho: só tinha seis meses.
Mas, estava eu e minha filha a tentarmos acalmar o homem quando, não sei o que Simão disse ao ouvido da cadêlinha que, de repente, desataram os dois a correr, como já nos era habitual ver.
Mas o senhor não estava acostumado àquilo. Enervou-se tanto. Deu de correr atrás dos dois cães que agora já andavam aos círculos,  alegres como lhes era de direito.


Diante de minha mais pura estupefacção, a dada altura, o senhor deu de se atirar num salto destemido, à guarda-redes (goleiros) quando para deter a bola, mas a ânsia dele era segurar a cadêlinha. E ai! que caiu estatelado de cara na areia enquanto os outros dois prosseguiam na brincadeira, só a parar quando eu consegui segurar Simão, ficando então, a cadêlinha perfeitamente incólume a olhar, parada na areia, para o colega já no meu colo.


O homem levantou-se dum salto, agarrou a cadêlinha"ai, meu Deus! o coração dela está aos saltos." 

E eu ainda a ver se o acalmava: "É natural, andou a correr divertida..."

"Ai, a minha cadêlinha... ai o coraçãozinho dela..."

"Ó homem! Este também tem o coração aos saltos!" - e agarrei-lhe a mão para que sentisse o bater corrido dentro do peitinho do meu Simão...

Ai vida. Ai homens e suas cadêlinhas. 

Só uma coisa assustava o Simão: o mar. Talvez por culpa minha, pois eu  morria de medo que ele fosse nas ondas e gritava com minha filha, sempre quando o mar chegava mais perto.
Então depois era ele que corria, que fugia, quando via a onda a chegar...

Com o mar ele não queria nada.

Pois Simão acabou.
E levou um bocadinho da gente com ele.
em 2011


 Nota: Na falta de foto de Simão, que na altura, foram todas apagadas, talvez erradamente, na estúpida crença de que o que os olhos não vêem, o coração esquece,  uso uma foto de um dos meus sites de eleição, como sempre, devidamente linkado. 
Poderia ter escolhido uma outra qualquer, mas esta é a que melhor se assemelha "ao sorriso" de Simão, na sua vivacidade.

Simão existiu de verdade, e era tolo de verdade. Sua energia era inversamente proporcional ao seu minúsculo tamanho. Imparável. Incontrolável. Levando esta mulher aos píncaros do desespero muitas vezes, para delícia de quem mais o amava: a filha, que o levava para todo o lado, na mochila, onde ele se deixava transportar sempre de bom grado e "sorriso" aberto.
Talvez adivinhasse que o tempo lhe era escasso.
Morreu com míseros oito meses.

Morreu por imprudência, irresponsabilidade ou pura ignorância de alguém (porque existem pessoas, que não adianta a gente tentar sensibilizar, ensinar: simplesmente não sabem aprender. E admito, também culpa minha, que, em algum momento quebrei a guarda) que, para se precaver contra roedores indesejáveis, deixou veneno (raticida) onde não devia, sem as devidas precauções (em armadilhas: caixas próprias, compridas e com aberturas em tamanho pequeno, apropriado apenas para entrada dos roedores, onde se deposita o veneno no fundo, de maneira a que gatos e cães não possam alcançar e comer). 

O animal que ingere estes raticidas, segundo ensinou o veterinário, na altura, aguenta dois dias ou até mais, sem dar sinais de que está envenenado.
Se ninguém se apercebe do envenenamento, e não age nas primeiras horas, quando ainda há alguma possibilidade de tratamento, o envenenamento é fatal. Pode saber mais aqui.

Este texto sobre Simão já havia sido publicado anteriormente quando o blog ainda era o "Filosofando em cima da bicicleta", e estava em rascunho, como outros, quando da mudança para o atual "Do lado do Sol"
Agora, achei que era hora de busca-lo novamente, ao ler as dicas dos "cuidados a ter com o seu cão no outono" no blog de Brown Maria, aqui










16 comentários:

mム尺goん disse...

[ crônica linda e elucidativa ]

um beijo

Arco-Íris de Frida disse...

Tenho uma cachorrinha tbm assim pequenininha e muito espoleta... por ja estar mais velhinha, morro de medo que ela se va... amamos muito esses bichinhos...

Beijos...

Amara Mourige disse...

Triste o que aconteceu com Simão.Perdi minha cachorrinha Belzinha em agosto e tenho muita saudade!
Beijos
Amara

Lu Nogfer disse...

Oi Carmem.

Um texto incrivelmente reflexivo que amei refletir.

Beijos e obrigada pela doce companho

Shirley Brunelli disse...

Carmem, que acontecimento triste, terrível...Posso imaginar o que você sente a respeito.
Moro numa chácara e uso veneno para rato e nunca me preocupei com o perigo, mesmo tendo cães.
Ah! Simão...
Amiga, muita paz!

Ghost e Bindi disse...

O sofrimento de perder um companheiro animal é um dos mais doloridos. Talvez porque sejam sentimentos da mais pura gema, totalmente destituídos de qualquer interesse colateral: é amor puro.
Podes crer que me irmano nesse sentir, pois já perdi a companhia de muitos cãezinhos sorridentes, outros nem tanto, mas todos infinitamente amigos e amados. Quisera eu reencontrá-los algum dia, em algum mundinho bom por aí, em outro plano, por certo. Para mim, seria o Paraíso.
Um grande abraço! Bom domingo

Bíndi e Ghost

Graça Pires disse...

É sempre assim. Afeiçoamo-nos aos animais e depois sofremos com a falta deles. Também sinto contigo a ausência do Simão.
Beijo-

SOL da Esteva disse...

O sentimento e o Amor que deixamos ao nosso "companheiro" de boas e más horas, torna-nos frágeis diante da perda da sua presença.
Lamento, por ti, como o lamento por mim.


Beijos


SOL

Laura Santos disse...

Olá, Carmem!
Uma história tão bem contada e tão comovente, passando até por esse lado ridiculamente divertido do senhor com a sua "cadêlinha"...:-)
Quanto ao Simão, que maravilha de cão! E que pena ter morrido tão cedo e dessa forma.
Como compreendo que nunca tenha sido esquecido! Os nossos animais não serão nunca esquecidos porque fizeram parte integrante de nossa vida.
Um bom domingo, Carmem!
xx

Edith Lobato disse...

Todo homem que ama um animal guarda um infindo amor dentro de si. Linda crônica. Boa tarde de domingo.

RENATA CORDEIRO disse...

Gostei muito da reflexão que me foi proporcionada.
Beijo*

manuela barroso disse...

A irreverência do Simão atraiu o coração aos saltos da cadelinha, claro , se ele era assim para a vida, que não diria á sua amiga?
Sei o que é esse amor pelos nossos fiéis amigos. Por isso gostei tanto da sua história !
Beijinho Carmen

vieira calado disse...

Não foi em vida, mas acabou por ser vida de cão!
Saudações poéticas!

Clau disse...

Oi Carmem,
Gostei de conhecer a trajetória de Simão,
uma pena ele ter sido vítima de envenenamento por raticida.
Ainda bem que ele deixou boas recordações.
Beijos :)

Odete Ferreira disse...

Escrever sobre o que nos causou dor, faz muito bem à alma. Eis um motivo porque nunca quis ter um cão...
Adorei ler, amiga. Bem escrito e sentido.
(Ainda sorri com o nome; o meu filho chama-se Rui Simão - Simão em homenagem ao meu sogro que não conheci).
Bjo, Carmen

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, Carmem, sei perfeitamente de sua dor. Já estamos no terceiro cachorro e cada um que se vai, morre um pedacinho da gente. Nada, ou pouca coisa é tão triste quanto perder um animalzinho que nos acompanha há anos, como no caso dos nossos, aqui. Pena você não ter guardado uma foto dele, mas também entendo isso. Amo os animais, pra mim são seres perfeitos, amam sem pedir nada em troca. Gostei da história do seu Simão. Lhe deu alegria por algum tempo.
Deixo aqui meu carinho e meu abraço pra você.
Tais