É daquelas coisas que acontecem sem que
ninguém esteja à espera que aconteçam.
Aparecem do nada, pura e simplesmente.
E deixam a pessoa desbundada.
Tal e qual! Era a expressão usada por um professor que eu
tive e que se aplica na perfeição àquela situação em que se fica assarapantado,
diante de algo que nos é ininteligível de todo.
Foi assim que me senti: completamente desbundada, diante daquele casal de irmãos que me entrou porta adentro com
uma confiança que assombrava.
Muito asseados e bem trajados na sua simplicidade.
Ela pouco mais nova, preocupada em aprumar o porte
tentando, talvez, com o seu endireitar de costas, mostrar-se mais madura a fim de obter
mais respeito ou, pelo contrário, apenas enxotar a vergonha.
Queriam falar com a directora.
Quando perguntei de que se tratava, o rapaz respondeu
que ele e a irmã precisavam
muito falar-lhe.
Diante de meu silêncio face a tão elucidativa resposta, os dois entreolharam-se. Consegui que acrescentassem que tinham um problema.
Apressei-me a esclarecer que não queria saber detalhes, mas que precisava adiantar à directora o assunto que os trazia. Pois sem uma razão bem fundamentada ela não os receberia.
A irmã que, a esta altura, segurava bem segura a alça da bolsa que trazia ao ombro suspirou.
A irmã que, a esta altura, segurava bem segura a alça da bolsa que trazia ao ombro suspirou.
O rapaz, futuro homem, pareceu-me à beira de impacientar-se:
o problema é com a mãe - respondeu, por fim.
Ele, que começara com poucas
e medidas palavras, avançou sem medo, a ensaiar para o homem
que haveria de ser um dia.
Aliás, não se tratava de um problema da mãe, era na verdade um problema de família! - argumentavam os dois, agora em uníssono.
Diante da confusão que se deve ter estampado em meu rosto, pois que por esta não estava eu à espera, ele concluiu: precisamos
falar à directora para saber se ela arranja
um trabalho à nossa mãe.
Ela anda desesperada: já trabalhou como
cozinheira lá, naquele restaurante da esquina. Mas trabalhava muitas horas,
nunca tinha uma folga e no fim nem lhe pagavam direito. - ele falava
quase sem respirar, saía tudo num fôlego só, como se estivesse, há muito, ali
guardado à espera de saltar cá para fora, à primeira oportunidade.
E seguiu
desfiando o rosário de infortúnios da mãe.
A cada frase dele eu sentia-me mais encolhida na
minha cadeira, sem saber bem o que lhe dizer e, sem saber se havia de
interromper aquele desenfrear de palavras daquele menino tão homem.
A irmã assentia com a cabeça, a reforçar o que o
irmão dizia.
Fiquei a saber que haviam vindo por iniciativa própria,
sem que a mãe soubesse, quando ela saíra de casa num rumo oposto, à
procura de trabalho.
Soube também, que a mãe estava inscrita no Centro de
Emprego, mas não recebia subsídio de desemprego porque nunca fizera descontos.
E soube ainda que o pai abandonara a família
quando eram pequenos.
Havia um terceiro irmão mais velho que era quem,
até então, lhes valia, mas fora despedido e ia tentar a sorte no estrangeiro.
E, pelo meio, ainda fiquei a saber que com tudo
isto, a mãe daqueles dois irmãos a rondar entre os catorze e os dezasseis anos
queria que eles continuassem os estudos para um dia serem gente.
Eles acreditavam que iriam chegar a casa com boas
notícias para aquela mãe que eu já via à minha frente completamente
desesperada, com as mãos na cabeça, enfiadas nos cabelos desalinhados, sem
saber que rumo dar à vida.
Peguei no telefone e quando ouvi a directora do
outro lado, só lhe disse que tinha à minha frente dois irmãos desesperados a
pedir trabalho para a mãe.
O silêncio dela ajudava-me a ter força para continuar
aquela ousadia: “ao menos ouça” – pedi-lhe.
Toda a gente merece ser ouvido.
Ouvido, apenas.
Ser ouvido pelo outro.
Por um outro que, por mais ocupado, dê um pouco do
seu tempo para ouvir. Mesmo que não
dê mais nada, está a ajudar a acreditar que um dia será possível acontecer algo
mais…
Ser ouvido pelo outro ajuda a combater o
desespero.
Ser ouvido pelo outro faz-nos acreditar que temos
alguma dignidade: porque ainda não se
perdeu tudo.
Às vezes, só ouvir, pode fazer toda a diferença ao outro.
Nunca em minha vida presenciei semelhante: os
filhos a darem a cara para pedir trabalho para uma mãe!
Meu Deus!
Que mundo é este?
Em que mundo eu vivo?
Em que mundo você vive?
Vivemos num mundo-cão!
Vivemos num mundo em que filho procura trabalho
para mãe desesperada.
Nesse dia eu falei com Deus.
4 comentários:
Ufa, minha amiga, que aperto no coração.
Um assunto infelizmente tão banalizado na nossa sociedade, mas que conseguiste retratar aqui de uma forma absolutamente avassaladora.
Se falaste com Deus, temos que ter fé e ACREDITAR que um dia ELE vai fazer alguma coisa....
Beijinho grande...foi bom voltar!!
Uauu, uma bela postagem, longa, mas de deliciosa leitura, gostei de ir lendo e pedalando, pensando nesta sua engenhoca q até parece uma bicicleta, muito bom passear por aqui, pra vc aqui d'além mar, bjos, bjos e bjossssssssss
Adorei sua visita uma belezura sua aposta é realmente interessante, acho q 2011 pode ser o ano de ser vovô, mas quem sb é o garoto e quem sb a garota tb, gostei muito do seu comentário, uma lindura, pra vc bjos, bjsoe bjossssssss
Falar com Deus pode ser falar consigo mesma?
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