No curto passeio matinal em que levo meu cão à rua e aproveito para espiar o meu amigo mar, deparo-me com uma cena, que à partida, parece a meus olhos ainda meio ensonados, um tanto insólita.
No espaço que eu divido com os restantes afortunados-amantes do mar, que ali se colocam estrategicamente para desfrutar de toda a beleza que o local nos oferece, avisto um homem que também habita na vila, que sei cego. O homem, tal como todos os outros que nos colocamos ali, naquele espaço privilegiado para olhar e respirar o mar, está, também ele, ali, mãos apoiadas no cercado, de cara voltada ao mar, a admirar o mar.
Passada a surpresa, pergunto-me o que faz um homem que não vê, parado em frente ao mar, como se o olhasse, tal e qual tantos outros que ali param, naquele miradouro em cima das rochas, sobre o mar...
Eu, como que em transe hipnótico, presenteada pelo acaso com este raro momento de beleza, não tiro os olhos do homem. Observo-o, admiro-o.
O homem arqueia o corpo, elevando levemente a cabeça ao céu, a inspirar aquele ar gelado da manhã levemente salgado pelo mar. Esboça um sorriso de prazer e torna a inspirar mais uma e outra vez. Cabeça então virada ao mar, os olhos que não vêm sabem-no ali e concentram-se nele.
O homem vê cada onda quando pressente sua aproximação e ouve-lhe a força com que se lança sobre as rochas.
O homem vê a imensidão do mar quando respira a maresia que dele chega.
O homem vê o estado do mar quando recebe os respingos que a marulhada lhe faz saltar à cara.
O homem vê o azul do mar pela intensidade do prazer que o momento lhe proporciona.
O homem cego não só vê, ele enxerga o mar, porque é com a alma que o olha.
Então, deixei-me estar quieta, voltada para o mar, fechei meus olhos e descerrei todos os meus restantes sentidos permitindo-lhes perceber todas as sensações que chegavam.
Tenho ciente de que não terei conseguido perceber todas as sensações experimentadas pelo homem, meu vizinho no miradouro, porque não possuo, nem de longe, sua capacidade, adquirida ao longo duma vida de experiência. Mas naquele dia eu aprendi mais um pouco da vida. Naquele dia eu descobri uma outra maneira de ver.
O que é ser cego - ler aqui
Homem cego "vê" através do som - ler aqui
19 comentários:
Emocionante relato!
A dimensão do olhar é infinita!
Beijo carinhoso!
Amiga Carmem, gostei do texto, o qual nos convida à reflexão; nos convida a uma mudança de postura.
Um abraço daqui do sul do Brasil. Tenhas uma linda tarde.
Um texto muito bonito. Sempre acreditei que os cegos, também vêem embora não com os olhos como nós.
Quando era jovem, trabalhei com uma jovem um pouco mais velha do que eu, que era cega de nascença. Às vezes ao ouvi-la contar certas coisas quase tínhamos a certeza que ela via, pela expressão de enlevo ou de tristeza conforme o que estava a contar.
Um abraço
Muitas vezes de frente ao mar fechamos os olhos... sentimos o cheiro e principalmente o barulho que acalma... o mar é mais para sentir do que para ver...
Beijos...
Já lá diz aquele velho ditado: 'é mais cego aquele que não quer ver'.
Beijinhos
Li, com prazer, este relato, apreciando, de igual modo a forma como o foste narrando.
Quem vê fica sempre surpreendido perante as capacidades que um invisual revela. Mas, quantas vezes, não somos nós os cegos? Eles veem ainda mais profundamente pois todos os outros sentidos estão mais apurados.
Aqui há uns tempos escrevi um poema sobre a diferença, pensando num invisual (http://portate-mal.blogspot.pt/2015/01/olhares.html#comment-form ); tu também o leste, mas se quiseres podes "revisitá-lo".
Bjo, querida Carmen :)
Maravilhoso texto! tenho um vizinho cego e sei que eles desenvolvem instintos e sensações diferentes das nossas, muitas vezes também o observo e tento adivinhar o que estará ele sentindo.
Bjs
Olá Carmem!
Dizem que quando uma pessoa é cega, os outros sentidos ficam mais apurados. Ele provavelmente sentirá coisas que a nós passam despercebidas.
Um dia de sol no meio destes dias frios é uma benção!
Beijinhos
Simplesmente maravilhoso,muitas vezes precisamos saber ouvir,para aprender enxergar.
bjs Carmem e obrigada pela visita.
Carmen Lúcia.
Lindo, lindo.
Amei.
Se todos percebessem o quanto o sentir é tão mais importante!
Bela reflexão!
Beijos
Boa noite!
A pessoa cega enxerga mais do que nós. Eles veem como se os barulhos, no caso, do mar sentindo as suas borbulhas, o cheiro, a aproximação de pessoas querendo conversar.
Ela conversa com os pássaros, ouvindo os seu gorjeios, sente o cheiro da terra quando os pingos d'águas prenunciam a chuva, sente a tristeza do Sol, com a maldade dos homens.
Ver não é enxergar é sentir vibrações.
Beijos
Lua Singular
Que lindo texto, minha cara Carmem!
Ver com os olhos de invisuais é ver mais além do que os olhos podem enxergar. É ver com os todos os sentidos, é saborear com a alma.
Lindo! Amei!
Obrigado pela partilha.
Um beijo
MIGUEL / ÉS A MINHA DEUSA
BELLO, DISIENTE RELATO. ME GUSTA!!!
BESOS
Apresentação de um caso real que te levou á partilha do "silêncio dos olhos". Sei que hás apreciado mentalmente muitos sons, odores e coloridos da imaginação.
Um excelente exercício duplamente vantajoso. Disfrutá-lo, foi, certamente, memorável.
Parabéns.
Beijos
SOL
O homem cego "vê" através do do som e através do olfacto. Todos sabemos que a falta de um sentido nos faz aprimorar os outros.
Eu, por exemplo, perdi o sentido do olfacto devido a um traumatismo craniano, e sinto que o meu olhar sobre o que antes podia ser o cheiro,se tornou mais intenso, como se quisesse sentir o aroma do qual tenho apenas a lembrança.
Belo texto, Carmem!
xx
Oi Carmem :)
Por enxergar com a alma, a sensibilidade desse homem,
é muito superior a nossa...
Provavelmente ele sente tudo com muita intensidade e satisfação...
Beijos!
Olá Carmem!
Linda esta sua percepção. Quando nos tiram algum sentido, podemos nos superar em outros!
Bj
Uma outra forma de olhar, com o coração e os outros sentidos.
beijinho
Fê
Enviar um comentário